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  • Foto do escritorWalmir de Albuquerque Barbosa

Crônicas do cotidiano: Custa crer, mas é verdade

Das minhas janelas ouço os brados exaltadores de “Selva!”; gritos dos novos recrutas que acabaram de incorporar e, pela primeira vez, adentraram aos quartéis ostentando a farda do Exército Brasileiro. As bandas de música se esmeram nas marchas militares tradicionais; a Bandeira sobe impávida e garbosa; só não sei se os novos soldados da pátria já acertaram o passo, não dá para ver, mas confesso que gostaria de saber se todos estão marchando “direitinho”, para não lembrar do meu tempo e daqueles instrutores severos e vaidosos, mandados pelo 27. BC para ensinar as crianças e adolescentes a marcharem para os desfile de 7 de setembro; e que nos ameaçavam quando errávamos os passos, mesmo sem sermos soldados, tempos da “Revolução”. Quero crer que todos já fizeram um treino mas, assim mesmo, precisam aprimorar o passo e meus votos são para que marchem na direção certa, em obediência restrita aos preceitos constitucionais reservados às Forças Armadas e, assim,  mereçam o devido respeito de todos. Embora não seja tão grave, ainda fico triste ao ver os recém-incorporados cortando capim e limpando quintais nas vilas militares dos derredores de quartéis. Já me disseram certa vez que não tenho nada a ver com isso, mas continuo achando que poderiam exercitar coisas mais relevantes; e os moradores da vila limpariam os seus quintais ou pagariam trabalhadores especializados para tal, como os civis.

 

Nem tudo é festa. Embora o Presidente, dias atrás, tenha dito que não vai ficar “remoendo” coisas da Ditadura, liga-se a televisão e as “patacoadas” que orquestraram o “desejado e planejado Golpe de Estado” saltam aos borbulhões das telas de TV, do YouTube, do TikTok e congêneres, envolvendo figuras outrora “impolutas”, tanto civis quanto militares, que se prestaram ao papel de trair a Pátria e tentar abolir o Estado Democrático de Direito. Os orquestradores e colaboradores são tantos que, tudo confirmado, veremos o tamanho do buraco em que estavam nos metendo. Para os que viveram o tempo da ditadura, nada se apaga da mente, e os gritos e sussurros de uma possível “anistia” fazem doer nossos ouvidos. Pensar que o espaço de onde ecoam hinos de festa e, no mastro, tremula a Bandeira Nacional, recentemente abrigou em sua frente um grupo considerável de pessoas empenhadas a avalizar um novo golpe, já é um alívio. Não cabe fazer de conta que nada aconteceu. A História serve para isso, para contar, para testemunhar, para que se possa aprender e viver melhor.

 

Não tem coisa mais bizarra, lembrar como se fosse hoje, a cena grotesca, no hall monumental da principal agência da VARIG, em Manaus, no centro histórico da cidade, servindo de palco para a pantomima da campanha nacional “Ouro para o bem Brasil”: ao fundo, na parede o Cartaz da Campanha, no chão um tapete verde sobre o qual repousava uma urna de Madeira adornada pelas Bandeiras do Brasil e do Amazonas e guarnecida por dois soldados, em trajes de gala, armados de fuzil. E civis, inebriados com a ditadura, em fila, doando seus anéis, alianças, cordões de ouro e outros adornos de valor para pagar a dívida externa brasileira, que diziam ter sido feita pelos “comunistas”. Muito bizarro! Para os que não lembram, a VARIG, naqueles tempos, detinha quase o monopólio da aviação comercial no Brasil. Se fizerem “busca e apreensão” na casa dos ricos daqueles tempos ou de seus herdeiros, os únicos que podiam pagar uma passagem de avião, é provável que ainda encontrem algum talher furtado e guardado como troféu de viagem inesquecível; os talheres do serviço de bordo da VARIG eram de prata, design único, uma joia. Enquanto na casa dos pobres ou seus herdeiros, da mesma época, encontrarão, certamente, as velhas colheres de aço inoxidável, para que durassem a vida toda, da Aliança para o Progresso, doadas pelo governo norte-americano, que ajudou a orquestrar, planejar, executar e apoiar politicamente o Golpe Civil-Militar de 64 e a Ditadura que lhe sucedeu. É duro conviver em meio a lembranças desagradáveis, algumas das quais se perpetuam em nome de ruas, viadutos, praças e escolas. Comemorar certas coisas ruins, sempre foi ultrajante. Mas esquecer coisas tão graves, jamais!



Jornalista Profissional.

Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas.

Manaus (AM), 8/3/2024.

*Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano.

Confira na obra "Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia".

Confira no canal do EMERGE a entrevista no programa Programa Comunicação em Movimento 09




Confira as crônicas anteriores 

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