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Crônicas do cotidiano: Ouço vozes... não são vozes estranhas

  • Foto do escritor: Walmir de Albuquerque Barbosa
    Walmir de Albuquerque Barbosa
  • 29 de nov. de 2024
  • 3 min de leitura

Por tudo que fez pela Literatura Brasileira, Clarice Lispector é considerada uma musa inspiradora. E dela não se pode dizer nenhum ai que não toque como espinho na alma dos leitores. Mesmo assim, com modéstia, diz que tem dúvidas: “Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito? Não sei, pois antes de começar a escrever para o Jornal do Brasil, eu só tinha escrito romances e contos”( LISPECTOR, Clarice. Todas as Crônicas. Rio: Rocco, 2018, p.118). Hoje, fazer crônicas virou o meu ofício. Boas ou ruins, deram-me a certeza de que resultam de um resumo do estado de espírito e, para chegar ao outro lado a que se destinam, precisam ter o tom de conversa comigo mesmo e com o outro, o leitor. Nesse processo ritual, eu me questiono, me empolgo e me recuso a aceitar o que insiste em vir à tona, coisas muito íntimas, outras dolorosas ou estranhas, porém coisas minhas, que estão em mim e borbulham, instigam e maltratam, carregando-me para os desvãos da escrita como se estivesse psicografando coisas vindas de alguém que já não está em mim. É o tal estado de espírito e não adianta relutar porque ele insiste em ser parido. Olho em volta e tento respaldar-me com um pouco de verdades acontecidas, encostando-as aos meus argumentos. É tudo que posso fazer para dar verossimilhança ao que digo.


Portanto, ouço vozes, elas são estranhas, mas logo se tornam identificáveis e as posso relatar. Assim, sinto-me à vontade e certo de que não estou louco: “Declaro vago o cargo de Presidente da República Federativa do Brasil”! Voz forte, tonitruante, é a voz de um “Canalha”, repetida por todas as rádios e bocas país afora. Era a voz do capacho civil mais perfeito do Golpe Militar de 1964, na primeira hora. A voz do Presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, abrindo as portas para os golpistas, mesmo sabendo que o titular do cargo, João Goulart, ainda estava em território nacional defendendo seu mandato, na forma da Lei. Tentei começar esta crônica sem tocar no assunto atendendo às recomendações dos que velam por mim e sempre dizem: veja lá o que você vai dizer! E se dizem isso é porque acreditam na força das palavras. Todavia, essas vozes me perturbam! Ouço-as como se fosse hoje, com tom grave procurando dar veracidade à farsa, como todas as vozes reveladas pelas investigações que estamos a ouvir, ininterruptamente, dando contas das tramas tenebrosas dos golpistas de agora, inscritas no relatório da Polícia Federal e proferidas pelos primeiros arrolados na trama de um golpe contra o Estado Democrático de Direito e entregue ao Supremo Tribunal Federal para providências. Falas e atos, como se o passado fosse o presente. Não sabemos dos desdobramentos, entretanto as vozes nos perturbam, sobretudo para os que já as ouviram outrora, com a devida reserva que os tempos fazem operar.


Olho para meus livros e me deparo com a obra de Paul Thompson, A voz do Passado: história oral, editada pela Paz e Terra, 1992. Como a Ciência, a técnica de investigação ou mesmo a metodologia da história oral ajudarão a transformar em peça acusatória o trabalho a ser feito pela PGR sobre o Relatório da PF dessacralizando depoimentos, delações e provas testemunhais, além de mensagens capturadas em mídias diversas? Metodologicamente diria Paul Thompson: “Agora a evidência já está coletada, classificada e preparada de forma acessível: as fontes estão a nossa disposição. Mas como articulá-las? Como construir a história a partir delas?”(p.299). Seguindo a técnica, caberá decidir sobre a forma de apresentação; avaliar e testar a evidência; e, por último, relacionar a evidência constatada com os modelos mais amplos e com as teorias da história para que faça sentido. A evidência aponta e até repete as táticas e os procedimentos dos golpes perpetrados no passado e até mesmo alguns dos envolvidos são oriundos dele. É por isso que essas vozes nos perturbam, elas ecoam de um passado que é presente, mas não podem persistir num futuro com o mesmo calibre, com a mesma entonação autoritária e cruel, liquidando, assim, toda a perspectiva de humanidade, de respeito institucional e de celebração dos feitos democráticos que alcançamos. Precisam ser silenciadas. É o que, oxalá, esperamos!



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Jornalista Profissional.

Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas.

Manaus (AM), 29/11/2024.

*Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano.

Confira na obra "Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia".

Confira no canal do EMERGE a entrevista no programa Programa Comunicação em Movimento 09 

 
 
 

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