Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o excesso no dever de informar gera dano moral. Entenda o caso:
"Em dezembro de 2016, o ex-Presidente Lula ajuizou ação de indenização por danos morais contra o então Procurador da República Deltan Dallagnol.
O autor alegou que, em setembro de 2016, o réu realizou, em Curitiba (PR),uma coletiva de imprensa sob o pretexto de divulgar e explicar uma denúncia criminal que foi oferecida pelo MPF contra Lula.
Ocorre que, segundo o autor, nessa entrevista coletiva, o réu teria utilizado expressões pejorativas e teria prejudicado a sua honra e imagem.
Na coletiva, o então Procurador utilizou uma imagem criada no PowerPoint para apontar Lula como “maestro” e “comandante” do esquema criminoso investigado na Lava Jato.
De acordo com os advogados de Lula, Dallagnol feriu direitos de personalidade do ex-presidente em rede nacional de televisão, exercendo um juízo de culpa mesmo antes do início da ação penal, além de trazer acusações que nem sequer faziam parte da denúncia. Ainda segundo eles, a entrevista coletiva foi replicada em diversos sites do Brasil e do exterior, ampliando a dimensão do dano à imagem do ex-presidente.
Vale ressaltar que a ação foi proposta apenas contra DeltanDallagnol, sem a presença da União no polo passivo, na vara cível da comarca de São Bernardo do Campo (SP).
No que tange à competência, o autor utilizou como fundamento o art. 53, IV, “a”, do CPC:
Art. 53. É competente o foro: (...) IV - do lugar do ato ou fato para a ação: a) de reparação de dano; (...)
Para o requerente, como a entrevista coletiva foi amplamente divulgada pela imprensa nacional e internacional e houve ampla repercussão também na Comarca de São Bernardo do Campo, onde o autor reside, deve-se considerar como sendo este o juízo competente para a causa.
Contestação
O réu apresentou contestação, alegando preliminares de:
• incompetência da Justiça do Estado de São Paulo, por ser a questão atinente ao cargo de procurador da República, o que levaria estabelecimento da competência da Justiça Federal;
• incompetência territorial por se tratar de fatos ocorridos em Curitiba/PR, não se justificando o processamento perante a Comarca de São Bernardo do Campo/SP.
Além disso afirmou que não seria possível a propositura de ação direta contra o agente público, devendo o autor ter proposto a ação contra a União e, se esta fosse condenada, demandaria o agente público em ação de regresso, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88.
Quanto ao mérito, alegou que agiu no estrito cumprimento de um dever legal e que, diante da gravidade dos fatos colhidos na investigação e pelo fato de o autor ter ocupado o cargo de presidente da República, foi compelido a conferir publicidade às informações em questão.
Pedido de ingresso da União como assistente
A União ingressou nos autos pugnando pela sua admissão como assistente.
Sentença
O juízo de 1ª instância:
• reconheceu a competência da Justiça Estadual de São Bernardo do Campo;
• rejeitou a alegação de que a ação deveria ser proposta contra a União;
• indeferiu o pedido de ingresso da União como assistente.
Quanto ao mérito, o juízo sentenciante entendeu que não assistia razão ao autor e julgou improcedente o pedido de indenização.
Acórdão do TJ/SP
O autor interpôs apelação, mas o TJ/SP desproveu o recurso, mantendo a sentença na íntegra.
Ainda inconformado, o autor interpôs recurso especial? O STJ concordou com o pedido do autor?
SIM.A 4ª Turma do STJ, por maioria de votos, condenou o ex-Procurador da República DeltanDallagnol ao pagamento de indenização por danos morais de R$ 75 mil ao ex-presidente Lula.
Para o colegiado, o ex-Procurador extrapolou os limites de suas funções ao utilizar qualificações desabonadoras da honra e da imagem de Lula, além de empregar linguagem não técnica ao participar da entrevista.
A Turma levou em consideração, ainda, que Dallagnol imputou ao ex-presidente fatos que não constavam da denúncia explicada durante a coletiva.
O relator do recurso especial Min. Luis Felipe Salomão explicou inicialmente que, quando o agente público pratica ato com potencial para se tornar um ilícito civil, sua condição de agente de Estado perde relevância, ainda que a conduta tenha se dado com o uso da condição pública. Nesse caso, segundo o relator, responde à ação não o ente público, mas o próprio servidor.
O Relator também destacou que, de acordo com lições da doutrina, é configurado abuso de direito quando o agente, atuando dentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe confere, não observa a função social do direito subjetivo e, ao exercitá-lo, causa prejuízo a outra pessoa.
No caso dos autos, o Ministro apontou que o ex-procurador da República, por meio do recurso do PowerPoint, utilizou palavras que se afastavam da nomenclatura típica do direito penal e processual penal, a exemplo de “petrolão”, “propinocracia” e “governabilidade corrompida” – todas direcionadas, na apresentação, ao ex-presidente Lula.
Além disso, o relator entendeu que Dallagnol incorreu em abuso de direito ao caracterizar Lula, durante as falas na entrevista coletiva, como “comandante máximo do esquema de corrupção” e “maestro da organização criminosa”, bem como ao anunciar fatos que não faziam parte do objeto da denúncia.
Para definição do valor de indenização, o Ministro utilizou o método bifásico de cálculo, fixando, com base em julgamentos de casos semelhantes, o valor-base de R$ 50 mil. Na segunda fase de cálculo, o relator levou em consideração circunstâncias como a gravidade do fato em si, a ofensa à figura de um ex-presidente da República e a dimensão da repercussão da entrevista. Como consequência, o magistrado estabeleceu o valor definitivo da indenização em R$ 75 mil.
Em suma:
O excesso no exercício do direito de informar é capaz de gerar dano moral ao denunciado quando o membro do Ministério Público comete abusos ao divulgar, na mídia, o oferecimento da denúncia criminal. STJ. 4ª Turma.REsp 1.842.613-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 22/03/2022 (Info 730).
Outros trechos do voto do Ministro Relator:
O Código Civil orienta que o abuso de direito consiste em um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito e a exclusão deste ilícito, apta a afastar a responsabilidade civil, deve estar associada ao regular exercício de um direito, cuja prática não tolera excessos.
De maneira objetiva, abusar do direito é extravasar os seus limites quando de seu exercício. Assim, configurado estará o abuso de direito, quando o agente, atuando dentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe confere, não observa a função social do direito subjetivo e, ao exercitá-lo, desconsideradamente, ocasiona prejuízo a outrem.
Na circunstância em análise, para verificação da ocorrência da subsunção dos fatos à cláusula geral do abuso do direito, em virtude da realização de coletiva de imprensa transmitida em rede nacional, cujo pretexto era informar a apresentação de denúncia criminal contra denunciado, o Procurador da República utilizou-se de expressões e qualificações desabonadoras da honra, imagem e não técnicas.
Nessa ordem ideias, o processo é o alicerce sobre o qual se materializa a tutela jurisdicional. Sendo o direito penal a última ratio, o processo penal se revela como plataforma capaz de garantir segurança jurídica na apuração de um tipo criminal, apto à concretização das garantias e direitos fundamentais de estatura constitucional.
A partir desse entendimento, não há espaço para dúvidas de que todos os agentes envolvidos nas bem delimitadas etapas da persecução penal devem cuidar para que o procedimento não se desvie de fundamentos éticos, assim como trabalhar pela preponderância intensificada dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
É imprescindível, para a eficiente custódia dos direitos fundamentais, que a divulgação do oferecimento de denúncia criminal se faça de forma precisa, coerente e fundamentada. Assim como a peça acusatória deve ser o espelho das investigações nas quais se alicerça, sua divulgação deve ser o espelho de seu estrito teor, balizada pelos fatos que a acusação lhe imputou, sob pena de não apenas vilipendiar-se direitos subjetivos, mas, também, e com igual gravidade, desacreditar o sistema jurídico.
Na linha desse raciocínio, no caso em exame, revela-se inadequada, evidenciando o abuso de direito, a conduta do membro do Ministério Público ao caracterizar o denunciado de forma pejorativa, assim como ao anunciar a imputação de fatos que não constavam do objeto da denúncia que se conferia publicidade por meio da coletiva convocada.
Se na peça de acusação não foram incluídas adjetivações “atécnicas”, evidente que a sua anunciação também deveria resguardar-se daquelas qualificadores, que enviesam a notícia e a afasta da impessoalidade necessária, retirando o tom informativo (princípio da publicidade) e a coloca, indesejavelmente, como narrativa do narrador, por isso que, gerando dano moral a vítima, é passível de sancionamento civil."
Fonte: CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Ação de indenização de Lula contra Deltan Dallagnol (entrevista do PowerPoint). Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/48cb136b65a69e8c2aa22913a0d91b2f>. Acesso em: 29/06/2023
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