Crônicas do Cotidiano: A Tornozeleira e suas Senhas
- Walmir de Albuquerque Barbosa

- 28 de nov.
- 3 min de leitura
Acordei mais tarde que o de costume. Mas o sábado, 22 de novembro, não era como um outro qualquer. Abri minha janela virtual e deparei-me com as trends da internet e a mais saliente delas era: “Bolsonaro em prisão preventiva na PF”. O acontecido entre os oito minutos do dia 22 e às nove horas da manhã tinha um enredo com narrativas diversas, como é de ser no nosso mundo midiatizado: aproximavam-se dos 50 mil comentários por hora, postados nas redes sociais. O susto foi grande, apesar da previsibilidade, pois o ex-Presidente, já condenado e em prisão cautelar em sua residência, nunca foi exemplo de cautela comportamental. O fato era outro e não era um fato qualquer, não era a
prisão, mas o que a motivou: o preso domiciliar havia violado a tornozeleira eletrônica usando um aparelho caseiro de solda. As televisões, em cobertura ao vivo, já estavam todas no ar com os seus repórteres e comentaristas cativos dos programas e especialistas em tudo para tecer os fatos, alterar narrativas por opiniões diversas, mudando o rumo da prosa. As palavras pouco me importavam mais. O que chamava a atenção, independente do que se dizia, era repetição ad nauseam da tornozeleira eletrônica como objeto principal da cena de ilustração dos fatos ainda em apuração jornalística. A tornozeleira violada atada à perna magra do ex-Presidente da República do Brasil girava, quase que
ininterruptamente, nas telas das emissoras de TV, mostrando os detalhes das avarias enquanto se ouvia, também repetidamente, a voz suave, respeitosa e educada da policial perita num momento tão grave, entre quatro paredes, escancarando para o mundo um flagrante criminal impróprio para quem se diz um mito, que exerceu o mais alto cargo da República e agora se mostra na intimidade um ser frágil, um farrapo humano de verdade ou um ator adestrado a representar numa ópera bufa. No entanto, o objeto rodando, rodando e se expondo na sua inteireza parecia obsceno e cada vez mais obsceno e
assumindo significados novos a cada volta que dava nas telas ampliadas das TVs; a cada repetição da cena e das perguntas da policial e das respostas do flagranteado as redes sociais reagiam em explosões de afetos negativos e positivos.
Lembrei-me de Jean Baudrillard (1929-2007) em “O Sistema dos Objetos”, mais
especificamente, de sua obra “Senhas” : “os objetos são senhas por excelência que conversam entre si e elaboram sistemas de signos e sintaxes”; e esses objetos signos suscitam interferência de múltiplos tipos de valores, muito mais ambíguos que os signos linguísticos e, portanto, têm um papel dramático: em si são atores com os papéis principais. A imagem daquela tornozeleira rodando na tela cada vez que era manipulada pela policial é esse objeto de que nos fala Baudrillard e que nos carrega para uma zona cega das trocas simbólicas que não se reduz ao imaginário, pois é mais palpável, do mundo dos humanos que lidam com as contradições, sejam elas históricas ou hodiernas,
que nem sempre compreendemos ou apreendemos na sua totalidade. A cada rodada da tornozeleira na tela vão aparecendo as senhas do objeto: o obsceno da situação deixando ver uma pessoa solitária, decrépita, com o invólucro de mito em desconstrução; o virtual como o real possível, visto da janela por onde todos nós vemos a realidade na sociedade informatizada e dominada pelas tecnologias da comunicação; o aleatório, que se associa ao fractal (partido, quebrado), “que nos leva ao efeito imprevisível das coisas”; a transparência do mal, contida numa das rodadas daquele objeto na tela, evocando a vontade de destruição da ordem política e moral de uma nação, por meio de um golpe de
estado; o caos como método de ludibriar a Justiça e a convidar para uma nova ordem social a ser imposta; e, numa nova rodada da tornozeleira, a tentativa vil de convencer, de seduzir telespectadores, com elocuções débeis do flagranteado que tudo se tratava da engenharia de um crime perfeito, portanto, “a eliminação do mundo real”; e, como nos diz o autor de Senhas, “no crime perfeito, é a perfeição que é criminosa”.
O dia 22 foi diferente, mas o dia 25 de novembro foi um divisor de águas que não se juntarão jamais; não foi “escrito nas estrelas” como coisa venturosa, mas como destino de tudo que se volta contra si mesmo, e vira Justiça e História, tomadas como lição!

Jornalista Profissional.
Professor Emérito e ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas.
Manaus (AM), 28/11/2025.
*Toda sexta-feira publica no site EPCC suas Crônicas do cotidiano.
Confira na obra "Trajetórias culturais e arranjos midiáticos" (2021) seu capítulo "Comunicação, Cultura e Informação: um certo curso de jornalismo e vozes caladas na Amazônia".
Confira no canal do EMERGE a entrevista no programa Programa Comunicação em Movimento 09



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